20 de janeiro de 2010

O DIA DO CANTO DA ACAUÃ




O RIO IPANEMA – primeira parte



Fulano, venda tudo, que v~o~c~ê terá pagamento. (Entendeu, né, a palavra: v~o~c~ê?). Tia Adalgisa tem músicas bonitas. Você não tem um amigo honesto? Eu quis saber me referindo a Mazzaropi, que olhou novamente para Teixeirinha e lhe propôs sociedade na fita. É bom fazer negócio através de telefone, porque fazer negócio invadindo as estradas não é negócio. A música da tia Adalgisa é linda. Inspirada. Neste momento, eu me recordei que havia sido ali mesmo no rio Ipanema onde foi travada a batalha de D. Sebastião. Mostrei a Mary Terezinha o local exato onde D. Sebastião se afogou.

- Como é o nome desse poço? Quis saber Mary Terezinha.
- É o Poço de D. Sebastião, vulgo Poço dos Homens.

Os santanenses conhecem os poços do rio Ipanema. Jogam bola nas ilhotas do Panema, criam gado nas margens e plantam hortas. Muitos homens com a cara lavada em sangue desceram os becos do Panema jurando vingança a seus desafetos. Mazzaropi olhou de soslaio para Teixeirinha, e eles combinaram mudar o projeto de “A Volta Pela Estrada da Violência” para “A Batalha Alcácer-Quibi”. O sonho de Mazzaropi seria realizado às margens do rio Ipanema, em Santana, gravando a história de D. Sebastião, filho-neto do rei João, aquele que foi o terceiro em Portugal.

- A Dinastia de Avis bebeu água do Panema? Quis saber Mazzaropi surpreso e olhando sério para Teixeirinha.
- Bebeu D. Sebastião água do rio Ipanema na época da descoberta.
- D. Sebastião?
- Não só D. Sebastião como o seu pintor Cristóvão de Morais.
- Foooooooooi?
- E ainda encheu um cantil dágua pra sua avó, a rainha Catarina da Áustria.
- Me disseram que D. Sebastião tinha morrido do coração.


D. Sebastião e seu cachorro Baleia caçando às margens do rio Ipanema.



O RIO IPANEMA – segunda parte


Tia Adalgisa não queria ser importunada naquele dia, porque estava vendo um filme de 1963 http://www.youtube.com/watch?v=9eDeIKxZ48c&NR=1 onde tia Adalgisa reconhecia a fauna, a flora, as personagens e a cachorra Baleia caçadora de ratos do campo. Seria meio-dia no relógio da matriz, tia Adalgisa? Tia Adalgisa não quis me responder.

Eu estava em cima de uma das pedras no Poço dos Homens quando avistei uma onça fugir de blocos de gelo trazidas na espinha do rio Ipanema. Havia um bairro ribeirinho do qual não me disseram o nome até quando eu terminava de escrever este texto em uma mesa da Prefeitura de Santana do Ipanema. A água escura do rio Panema carregava não apenas garranchos, corpos suicidas de prostitutas, crianças e bêbados, o rio lavava os girinos e grandes nacos de gelo.

Uns pescadores rezavam alto para conseguir encher uns litros de fundos de garrafas encolhidos com piabas, contudo as piavas estavam participando do projeto do papa-figo. As carpideiras lavavam as suas roupas encardidas de lágrimas na mesma água do Ipanema, de Santana, que é Santana do Ipanema, debaixo da Serra do Cruzeiro. O sol rindo o riso de quem rir como uma acauã. Senti, besta hora de meio-dia, que a tia Adalgisa não iria gritar o meu nome para almoçar. Teria preferido ser um canção de fogo no oco da baraúna. Não serei jamais descortês com a tia Adalgisa, que me deu casa, cama, roupa, sapato, mesa e comida. Fiquei assobiando por alguns segundos, uma música que me lembrava, do ABBA; não porque quisesse, mas de tanto ouvi-la na casa da tia Adalgiza, que trocou o “z” por “s”.

O estilo da conversa entre as carpieiras era o mesmo das mulheres que choram por dinheiro. Avistei, de longe, Amácio Mazzaropi conversando com Teixeirinha e Mary Terezinha. Chamei Mazzaropi para falar sobre cinema nacional e Teixierinha me disse que estava, ali, para refilmar A Volta Pela Estrada da Violência com Mary Terezinha.

- Você tem certeza de que este é mesmo o rio Ipanema?
- Como você não reconhece um rio que não presta, porque n]ao tem peixe?
- Teixeirinha
- Mazzaropi
- Rio Ipanema significa águas perigosas!
- Em tupi-guarani?
- Em funi-Ô.
- Em caeté?
- Vamos almoçar na casa da tia Adalgisa?
- Ela sabe cozinhar?
- Aprendeu com os kariri-xocó.
- Não foi com os xucuru-kariri?
- Há pouco tinha um koiupanká pescando.
- Você me poderia falar sobre o racismo em Santana do Ipanema?
- O roteiro é este aqui.
- Mary Terezinha

Amacio quis saber sobre o bairro, Teixeirinha me fez perguntas sobre as casas. Eu lhes respondi que eram casas que sofreram o choque do sopro do lobo mau. Algumas casas caíram, outras casas se transformaram em casebres, casas de taipas, cobertas de palhas. Para tranquilizá-los, eu perguntei onde seriam as locações de “A Volta Pela Estrada da Violência”. Quis saber se já tinha trilha composta ou se a tia Adalgisa poderia ser a diretora sonora. Mazzaropi e Teixeirinha se entreolharam; eu olhei para Mary Terezinha:

- Sabe que pássaro é aquele?
- Não é uma ave?
- É uma acauã.




sobrevoa acauã o rio Ipanema, em Santana, do sobrinho da tia Adalgisa




O RIO IPANEMA – última parte



Chovia nas cabeceiras do rio Ipanema, segundo informações da Rádio Candeeiro. O gás acabou-se e apagaram o candeeiro. Os mandacarus riam com os seus risonhos risos às margens do areento e preguiçoso. Ocorreu que, no carnaval de 1966, em Santana do Ipanema, Alagoas, só agora me encontrei papel para relatar antes que o Alzheimer me obrigue a esquecer. Estamos, de acordo com o jornal de hoje, no ano de 1985.

Quem poderia narrar uma narrativa assim? No dia em que conheci Anni-Frid Lyngstad.

As horas nos ponteiros do relógio da matriz anunciavam com as suas badaladas badalando. Eu tinha acabado de chegar de férias de Estolcomo. E a primeira pergunta que me fizeram na rodoviário da Santana:

- Vócê éstá cómó?

Tinha na bagagem um disco do ABBA autografado pelos músicos e compositores Björn Ulvaeus e Benny Andersson, e as vocalistas Agnetha Fältskog e Anni-Frid Lyngstad. Era um presente para Adalgisa, a minha tia-avó que ainda mora na mesma casa, na mesma rua, e está sentada na mesma cadeira a olhar quem vai e quem volta. Adalgisa jurava para todo mundo em Santana do Ipanema que, em 2008, eles (ex-ABBA) fariam um filme sobre Mamma Mia. Tia Adalgisa sofria de premonições. Anni-Frid Lyngstad tinha certo interesse em conhecer Santana do Ipanema, onde o sol nasce para todos.

O rio Ipanema debaixo do canto melancólico da acauã, uma risada rasgada, dessas risadas da tia Adalgisa em seu estado de graça. Rindo de quem vê. O coro forte de acauãs que sobrevoam as água escuras do Panema, os pés curtos do pássaro não diferem dos pés da tia Adalgisa. Só o violão da tia Adalgisa é mais popular do que a Praça do Jumento, na entrada de Santana do Ipanema. Os visitantes da cidade só são atraídos senão ao som do violão da tia Adalgisa, eles vêm a Santana para se fotografar na Praça do Jegue. Canta tia Adalgisa:


acauã acauã acauã
voa falcão sorridente
entre as estridentes
pedras do Ipanema
sua preta máscara
antecipa o carnaval
alimenta-se da carne
acauã acauã acauã
solta a sua risada
limpa o solo do rio
come os morcegos
mata a serpente
acauã vinga Adão



Chovia nas cabeceiras do rio Ipanema, uma chuva chovedia e tão chuva quanto a chuva que chovia. Depois do canto da acauã vinha o urro da onça-de-bode. O trabalhador Candinho, livre e descendente dos revoltososos Malês de Salvador, Bahia, de 1835, nascido e criado em Santana do Ipanema, conhecido de uns e de outros, em sua homenagem na segunda metade do século 20, a cidade lhe ergueria uma praça na entrada da avenida principal. Na Praça das Coordenadas ficaria eternizado o tangedor de burro Candinho e um de seus jumentos, ali, na famosa Praça do Jegue. A Praça do Jegue, em Santana do Ipanema, foi notícia no New York Times, na CBN, na Deutsche Welle e na memória dos visitantes do Sertão alagoano.

18 de janeiro de 2010

O TRABALHADOR QUE VIROU ESTÁTUA

História de Cândido. Por muitos anos o trabalhador passou desapercebido nas ruas ladeirosas e suarentas de Santana do Ipanema. E pela primeira vez na história do município, entretanto, um trabalhador perde o anonimato para se eternizar em uma estátua de cimento e ferro. O trabalhador se transforma em estátua com o seu instrumento de trabalho: um burro.

Candinho e os burros Perigo e Persigo (Pirigo e Prissigo, como preferia chamá-los, ou alcançava com sua gramática típica) viveram em uma Santana do Ipanema que hoje repousa nas prosas sobre a cidade e a poesia que os poetas matutos cantam nas ruas cheias de feiras. Aliás, as ruas da cidade de Santana, tida por Rainha do Sertão, são ruas tomadas de feiras e cascas de vidas.



AS LADEIRAS DE SANTANA DO IPANEMA

Sob rigoroso verão, os vendedores de água no início do século 20. Não se imagina a quantidade de ladeiras que existem na lua, só em Santana do Ipanema, no Sertão alagoano, há tantas ladeiras de pedras onde casas são ligadas com diferentes cores e portas de largas passagens, janelões rasgados diretos para as ruas. As mesmas ruas onde almocreves, tocadores de gado, vaqueiros, carroceiros, tangedores de burros, amansadores de garrafa de cana sobem e descem com a mesma pressa do tempo.

Conhecer Santana do Ipanema, um município que se alarga com seus filhos por onde o rio Ipanema lhe alcança. São nas ladeiras de bicicletas, de motos e carros de praça, as calçadas de pernas se enchem com fome de chegar longe do sol onde o calor abrasa a cabeça sem chapéu, sem boné.

VENDEDORES DA ÁGUA DO PANEMA

Candinho, o Aguadeiro, de Santana do Ipanema, juntamente com dezenas de outros vendedores da água do rio Panema, no trabalho diário em levar água em lombo de burro às casas iguais a todos os ambulantes carvoeiros, comerciantes de pães e outros produtos. Nas ruas de Santana do Ipanema, distante de Maceió 250 km, os vendedores de água foram transformados em sombras do passado com casas ligadas, hidraulicamente, ao rio São Francisco com água de Pão de Açúcar a 50 km de Santana. No entanto, velhas cisternas reclamam água de chuva e vendedores de água em carros-pipas percorrem Santana como vendedores de pão.

Houve uma época distante que escapou dos livros didáticos e se agarram nestas páginas para que o registro não se confunda com a poeira que levanta-se ao soprar de vento nas quartas-feiras e sábados de Santana do Ipanema, onde a feira ocupa as principais ruas do mercado e o Mercado da Carne toma sentido, assim as toldas de queijos e doces sobem as ladeiras até a Feira da Farinha, próxima a estrada de rodagem 316 que traz de volta os filhos de Santana. Candinho que percorria estradas de pés descalços, hoje, transformado em praça, observa os carros trafegando na BR-316.

A CONTRIBUIÇÃO DO RIO IPANEMA

Geralmente, a cidade surge ao lado de um rio. A contribuição do rio Ipanema para Santana se foi. Nenhum rio supera em volume de pedras se comparado ao rio Ipanema. Foi no Panema onde as areias grossas construíram as casas de Santana do Ipanema e o Sertão alagoano se fez mais sertão. A flora e fauna se beneficiam das contribuições do rio Ipanema. O mesmo rio que matou a sede de Candinho e de seus asnos Perigo e Persigo que preenchiam os morros, as serras, os serrotes, as ladeiras, as subidas e descidas na cidade.

No silêncio de seus passos d’água, o rio Ipanema ainda é o mesmo que assusta com as suas enchentes, e cada cheia do Ipanema ele leva alguns para debaixo d’água. Muda a demografia santanense com as cheias do Panema.

ÁGUA EM BARRICAS DE MADEIRA




Uma manada leva em água em barricas de madeira. Estes foram alguns dos jegues que ajudaram, com sua força de trabalho, na construção da cidade. Vê-se de longe o barulho de burros que, encangalhados, vêm com suas ancorotas de água salobra do rio Ipanema. Velho Panema do Poço dos Homens, do Estreitinho, do Curtume, da Barragem, de águas escuras. Seco Panema de cacimbas rasas com águas claras para encher ancorotas de burros e abastecerem as cidades sedentas. A água do rio Ipanema se aproxima das donas-de-casas para lavar, banhar e competir com água da chuva.

Uma manada leva água para as bocas sequiosas do Sertão. Os jumentos ajudaram a construir o Sertão e o sucesso de Luís Gonzaga. O velho Lula com sua música em homenagem ao jegue, seguido por Genival Lacerda e outros artistas que tiveram no animal o mesmo reconhecimento dos artistas sacros a pintar ou esculpir o asno junto aos outros bichos em torno da manjedoura do Menino Jesus. As águas do rio Ipanema ainda teimam em sobreviver.

HISTÓRIAS DE TANGEDORES DE BURROS

Era uma vez um amansador de burro brabo quê. É de longe a história dos tangedores de burros a ocuparem a memória do povo de Santana do Ipanema, no Sertão alagoano, onde os escritores e escultores constroem uma nova realidade com a sua arte de retratar o burrico com ancorotas, um burrico prateado, de quatro ancorotas nas costas em cangalhas cercadas com um arco preto. Diante da história dos tangedores de burros, destaca-se Candinho com os seus asnos que ocupavam as ruas da cidade de Santana do Ipanema, no Sertão alagoano.

Esta história contada pela tradição dos que conhecem a importância da tração animal para construir a cidade. Os jumentos constroem as cidades.

17 de janeiro de 2010

A PRAÇA DO JUMENTO & O AGUADEIRO CANDINHO



Está escrito no livro “NÃO” (1989, P. 133), de um dos escritores de Santana do Ipanema, e esta narativa encontra-se no final da obra que, quase todas as tardes, eu vou reler na Biblioteca Municipal de Santana do Ipanema: Candinho granjeara fama e tornara-se bem-falado por ser um dos inovadores no Sertão alagoano a conduzir água do rio Ipanema em ancoretas nos lados de uma cangalha – esta usada para forrar lombo de burro – às casas que pediam os seus serviços. Nas ruas pedregosas de Santana do Ipanema, Cândido e dois muares (Pirigu e Prissigu) abasteciam os potes de barro das casas sem água.

Perigo e Persigo (1989, p. 133-4), nome de seus dois asnos. Candinho sempre transportou água com a ajuda deles, sendo um mais conhecido como Prissigu, vinda das cisternas, das cacimbas (feitas em dorsos areentos de rios e riachos) e dos açudes às clientelas exigentes que podiam-lhe pagar por uma carga, ainda que salobre.

Os burros e Candinho perdiam-se numa tangente que um caminho de casas e casinholas e muros rústicos e arbúsculos e árvores desnudas e raquíticas faziam-no. A sua voz, não obstante, ouve-se a dirigir-lhes ásperas palavras e a dar-lhes brados fortíssimos, persuadindo-os a apressarem os passos até então desanimados que nem os de quem vinha conduzindo-os:

- Troooooooceeeeeeeeeeee, buuuuuuuuurrooooo!

Na época em que começa esta história, os anos derradeiros do século 19 iam-se, verdadeiramente, enfrouxecidos e indolentes. Há quem se lembre. (in: Santana e o Inovador Candinho - Capítulo I - escrito no livro "NÃO", o mesmo "NÃO" do qual se originou o nome do portal http://www.santanaoxente.com/)




A Praça do Jumento e do Agadeiro Candinho, Sertão alagoano, em Santana do Ipanema. Em uma praça está registrada a memória eterna de um burro e o seu tangedor que vende água de casa em casa como um dos ofícios mais antigos da humanidade. A mesma água que banha é a água que se bebe e se cozinha os comeres de bode, de cordeiros, de gado. A praça com os seus significados. A praça sem árvores, queima diante do sol sertanejo.

Uma cidade plantada, como são plantados por ventos os mandacarus, no coração do sertão nordestino. O mesmo Sertão dos romances famosos, dos bandoleiros que enchem páginas, dos vendedores de carvão, dos vendedores de água, dos que vendem como se comercializassem as cidades.

PRAÇA DO JEGUE VISTA DA LUA

Está em todas as notícias desta semana. Na cidade de Santana do Ipanema, um dos municípios no Sertão alagoano, o Poder Local homenageou a história dos almocreves, dos aguadeiros, dos tangedores de burros que abasteciam a cidade com água do rio Ipanema. A importância da água em um lugar seco está registrada nas crônicas santanenses. A escolha do homenageado remonta a história da Revolta dos Malês, em Salvador, Bahia, no ano de 1835, quando alguns revoltosos livres afrodescendentes e outros afro-brasileiros e alguns africanos lutaram por liberdade a todos os escravizados de seu tempo. O nome de Candinho, um tanjedor de burros, fez história em Santana do Ipanema. Dos monumentos aos vultos históricos, a Praça do Jegue tem idêntica importância da Muralha da China vista da Lua.